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Môa do Katendê, o intelectual popular

O documentário “Môa – Raiz Afro Mãe” revela a trajetória do mestre Môa, suas contribuições para a cultura afro-brasileira e seu legado como referência cultural e espiritual.

“Grande parte do povo brasileiro desconhece a história do afoxé justamente porque é classificado como cultura popular, o que é meio estranho: um povo não conhecer a sua própria cultura. Mas, infelizmente, isso ainda acontece no Brasil; há esforços contínuos para que ela não seja descoberta e o povo não conheça a sua realidade. Estamos cansados de saber. Deveria existir um grande projeto em todo o Brasil para mostrar a cultura em todas as suas dimensões, do afoxé ao maracatu, por exemplo. Também deveriam ser realizadas oficinas que envolvessem o povo mais carente, levando para o teatro e universidades, discutindo e falando acerca do candomblé abertamente. Se fazemos samba, capoeira, construímos instrumentos e discutimos política, se até dividimos o nosso pão, devemos isso aos africanos e a uma fonte inesgotável que é o candomblé”, defendia o baiano Romualdo Rosário da Costa, intelectual popular, conhecido internacionalmente como Môa do Katendê.

Educador, compositor, percussionista, mestre de capoeira angola, do afoxé e da dança afro-brasileira. Alma nobre, Mestre Môa deixou um legado valioso para o país em seus 63 anos de vida.

 

Você pode estar se perguntando como nunca ouviu falar dele, mas certamente, em algum momento, será influenciado por seu pensamento e legado. Em Salvador (BA), sua presença, hoje como um ancestral encantado que habita mundos espirituais, é sempre evocada quando um corpo dança ao som das batidas do afoxé, nos blocos afro durante o carnaval, no gingado da capoeira angola e na inovação cultural e intelectual que ele proporcionou. Além disso, Môa desenvolveu um forte trabalho social para promover a autoestima dos jovens negros periféricos.

 

O documentário musical Môa – Raiz Afro Mãe (2022), escrito e dirigido por Gustavo McNair, apresenta a grandeza de Môa. O projeto foi iniciado em 2018, no mesmo ano de seu trágico falecimento, impulsionado pelo discurso de ódio nas eleições do ex-presidente Jair Bolsonaro. Caminhando pelas vielas do bairro Engenho Velho de Brotas, em Salvador, conhecemos a história do bloco de afoxé Badauê (que esteve ativo entre 1979 e 1992), o candomblé de rua, fundado por mestre Moa e Jorjão Bafafé, popularizado pela gravação de Caetano Veloso, em 1979, com a letra: “Misteriosamente/ o Badauê surgiu/ sua expressão cultural/ o povo aplaudiu”. Este é apenas um capítulo da extensa jornada do artista, que contribuiu ainda em célebres canções para o Ilê Aiyê, o primeiro bloco afro do Brasil, que completou 50 anos em 2024. 

 

O performer Negrizu, pseudônimo de Carlos Pereira dos Santos, apresentado como “o moço lindo do Badauê” na canção Beleza Pura (1979), de Caetano Veloso, relata no filme o momento de transição entre uma Bahia negra influenciada pelo funk norte-americano e pela cultura black power, nos idos de 1970, a reafricanização liderada pelos afoxés e blocos de índio.

 

Créditos: Kana Filmes

Em conversa com a Badauê, Negrizu declarou a imensurável importância de Môa e que foi incentivado por ele a liderar grupos de jovens com o intuito de aquilombar para evoluir sob uma referência artística e cultural. “Era um homem de candomblé e trazia a sua insígnia muito grande. Seu nome parecia de um guerreiro negro, como Zumbi. Ele nos estimulou a trilhar o caminho da arte, cultura, paz, perseverança, resistência e sabedoria. Um nome relevante para a cultura universal”, enaltece Negrizu. 

 

E para contar sobre o processo de criação do documentário e a experiência transformadora de estar em contato com mestre Môa, batemos um papo com o diretor Gustavo McNair. 

Todo mundo deveria saber quem foi Mestre Môa do Katendê

Confira a entrevista:

Mestre Môa durante gravação do filme. Créditos: Kana Filmes

Como foi o processo de documentar a vida do mestre Môa? Como era sua ligação com ele?

Gustavo McNair: A ideia de fazer um documentário surgiu junto a Môa quando o conhecemos, no início de 2018. Ele tinha uma vontade de contar sua história, e nós ficamos encantados pelo que ele falava, ensinava, por sua sabedoria, trajetória, e perplexos por ele não ter um reconhecimento nacional que fizesse jus ao tamanho da sua importância para a cultura brasileira. Fomos transformados pelo convívio com ele, e até hoje somos, em uma transformação que extrapola e muito o que está na tela. Não tinha como não fazer um filme sobre ele, e ainda há muitos filmes a serem feitos por muita gente que é influenciada por Môa.

 

 

Estamos vivendo o desencantamento da democracia racial e a retomada da narrativa por personagens que representam, de fato, a nossa diversidade. 

 

 

Neste momento, figuras de mestres como Môa, educadores carregados de sabedoria ancestral, são fundamentais para nos mostrar os caminhos do conhecimento e da reconexão com nossa verdadeira história. Uma história recontada, que pode apontar para um Brasil mais inclusivo no futuro. Môa não teve o amplo reconhecimento em vida justamente por ser um personagem que não atendia aos interesses narrativos da mídia dominante. Por isso, celebrar e eternizar sua história e seu legado através de filmes é ajudar a perpetuar uma história afro-brasileira e devolver Môa ao lugar que ele pertence, como representante polifônico da cultura brasileira.

 

 

Foi tudo isso: a história do Môa e os caminhos para pensar o Brasil que sua biografia aponta, que me interessaram em fazer o documentário quando ele ainda estava em vida e, após sua passagem, também. Mergulhar em seu universo foi uma experiência transformadora, que vou carregar para sempre. Aprendi, e ainda aprendo todos os dias, muito sobre o Brasil através do que ele falava e dos caminhos que ele continua a iluminar.

Durante o desenvolvimento da produção, ocorreu o falecimento trágico dele. Mesmo assim, isso não diminui a atmosfera do filme. Terminamos de assistir à obra melhor do que começamos, com uma energia revigorante. O que te inclinou a navegar dessa maneira por essa narrativa?

Quando conhecemos Môa e decidimos fazer o documentário, queríamos construir um filme de sua vida como forma de disseminar sua história e ecoar seus ensinamentos, uma celebração à cultura afro-brasileira que deveria educar e encantar. Depois de sua passagem, quando seu nome ganhou projeção como uma espécie de símbolo político (que ele era, mas não por seu assassinato, e sim pelo seu trabalho como arte-educador e mantenedor da cultura afro-brasileira como forma de elevação do Brasil), tivemos certeza de que o filme precisava continuar sendo a respeito de sua vida. Para devolvê-lo ao lugar da cultura a que ele pertencia e continuar celebrando o que ele acreditava, disseminando a mensagem que ele trabalhou a vida toda: uma proposta de união da nossa diversidade através do conhecimento, valorização e identificação da nossa cultura ancestral.

 

Fizemos um filme sobre a vida eternizada na mensagem e na obra de um artista que extrapola o tempo.

Muitos brasileiros ainda desconhecem quem foi Môa. Na verdade, muito da nossa história e das nossas personalidades são desconhecidos pelo grande público, especialmente se pertencem à parcela marginalizada pela sociedade. Como você enxerga a forma como a sociedade brasileira, em geral, lida com nossa memória coletiva? E como você, em seu trabalho, se relaciona com a memória?

Gustavo: Existe no Brasil uma ignorância em relação à nossa história cultural, muito porque ela é, em grande parte, fruto antropofágico [isto é, uma mistura criativa e inovadora de influências culturais] da diáspora africana, dos povos indígenas e dos colonizadores europeus, e o racismo estrutural tentou sempre diminuir a riqueza dessas narrativas.

 

Então, existe muito preconceito, pois existe desconhecimento. E vice-versa. É uma espiral de silenciamento de vozes que trazem conhecimento de narrativas que desafiam a história contada pelos colonizadores.

 

Môa, assim como tantos outros mestres da cultura ancestral, ensina que precisamos conhecer, reverenciar e manter viva a cultura afro-brasileira, que é a nossa verdadeira riqueza. A cultura originária do Brasil pode nos fornecer argumentos sólidos e nos unir em torno de uma identidade comum. Essa identidade tem o potencial de nos reconectar e superar nossas diferenças, que, na verdade, é o que temos de melhor.

 

Percebo no Brasil uma espiral de silenciamento das vozes e manifestações negras, uma estrutura do racismo cultural. O preconceito, que deriva da ignorância, leva ao apagamento. Esse apagamento gera mais ignorância e, consequentemente, mais preconceito. Por isso, a retomada da narrativa por personagens que representam nossa pluralidade é tão importante.

 

Trecho do documentário Môa. Créditos: Kana Filmes

Ao não reconhecermos artistas como Môa, estamos deixando de conhecer a nós mesmos e perdendo a chance de nos reconectar emocionalmente com nossa cultura, história e, portanto, com nossa identidade. Estamos deixando de nos emocionar com o que podemos ser. Essa conexão é muito mais potente quando temos diante de nós artistas carismáticos, talentosos e profundamente sábios como Môa, que têm o potencial de retomar a narrativa identitária e transformar vidas, tanto individual quanto coletivamente, especialmente em um momento em que carecemos de conexão com nossa ancestralidade.

 

Ancestralidade é futuro. Como Môa dizia, “É preciso reafricanizar a juventude” para que retomemos orgulho e conexão com nossas raízes afro-brasileiras, que são a verdadeira riqueza do Brasil. Por isso, é importante que esse reconhecimento seja feito em vida, para que essa força seja alimentada e celebrada em tempo de ser devolvida aos que lutaram por isso (vamos dar flores aos vivos), para que eles usufruam inclusive, e para que os jovens que se inspiram nesses mestres possam ver (e conviver com) esses exemplos presentes.

Môa foi uma figura representativa que, sem dúvidas, inovou no cenário cultural, levando seus saberes para o exterior. Como você enxerga a inovação cultural brasileira e o Brasil?

Gustavo: A antropofagia formadora da cultura brasileira é a nossa grande riqueza e força, a despeito do que muitos tentam diminuir. É um ineditismo potente que só é possível aqui e que representa a nossa diversidade. Mas sempre fomos muito influenciados pela visão colonizadora europeia, e esse complexo imposto à nossa vulnerabilidade acaba por nos afastar da nossa história. Temos imposta uma narrativa superficial e preconceituosa, que ignora nossa história originária e diminui a beleza do que conquistamos e construímos. Mas nesse âmbito cultural, muitas vezes somos nós contra nós mesmos. É a nossa missão conhecer para valorizar a nossa história. Conhecimento para gerar orgulho e, principalmente, reconexão com a cultura brasileira, que é muitas vezes manchada pela visão de fora que nos influencia.

 

É a mistura do Brasil que alimenta a nossa cultura e vice-versa. A cultura brasileira é a nossa história, reflete nossas lutas e conquistas, e principalmente uma identidade que é, sim, particular, exclusiva e com potencial de inovação maior do que qualquer outro país; justamente porque parte da reinvenção, da combinação e adaptação de outras referências e influências, pela nossa mistura que permite criação e recriação constantes, e sem fim. 

 

Nosso país se descobre e se inventa constantemente; estamos em um momento de reinvenção, de retomada da narrativa, portanto nossa cultura nunca se esgotará. 

Trecho do documentário Môa. Créditos: Kana Filmes

O que mais te marcou na concepção do filme ‘Môa, Raiz Afro Mãe' e que gostaria de compartilhar?

Gustavo: Môa transformou completamente o meu entendimento sobre o Brasil e, portanto, sobre mim mesmo. Conhecimento é munição, é argumento contra toda essa narrativa destrutiva e colonizada que vive tentando diminuir o Brasil. Continuo convivendo e aprendendo com Môa diariamente, porque a sabedoria ancestral aponta para o futuro e se dá desta forma, um conhecimento generoso e profundo. Demorado, que vai se ressignificando e guiando nossas angústias e decisões ao longo da vida.

 

Portanto, o processo desse filme está marcado em mim para sempre e em todos que participaram. E igualmente em todo mundo que conviveu com Môa em algum momento, e foi transformado. É impressionante o respeito que ele deixou, e a força que o axé dele tem de abrir as portas e unir as pessoas. Todo mundo que teve uma relação com ele se prontificou a ajudar e a contribuir com o filme, seja com informação, seja com material de arquivo que pudesse ter guardado. 

 

Foi essa força coletiva que ajudou a recontar a história cultural de um país, refletida na trajetória de um homem.

 

O filme deixa uma contribuição prática enquanto registro histórico de um movimento importante para a formação estética cultural do Brasil, sobretudo deixa uma mensagem de conhecimento, reconexão histórica e amor pelo Brasil, através da história de um homem que amplia os caminhos e as possibilidades de acessos às riquezas da nossa diversidade e ao nosso potencial de futuro. 

 

Esta é uma lição muito importante agora, neste momento histórico em que estamos, e também para o futuro. Precisamos aprender com nossos ancestrais para termos um futuro possível. Ancestralidade aponta para frente; o futuro é ancestral, como diz o título do mais recente livro de Ailton Krenak. É esse ensinamento que Môa nos passa.

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