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Inteligência Artificial, decolonialidade e coragem por Mayara Ferrão.

Entrevistamos a artista visual de Salvador/BA, Mayara Ferrão, para ampliar e aprofundar nosso entendimento da Inteligência Artificial e das possibilidades que essa ferramenta oferece ao processo criativo dos artistas brasileiros. Recentemente, Mayara chamou a atenção do público e do mercado da arte com seu trabalho “Álbuns de Desesquecimentos”. Nesse projeto, ela utiliza a tecnologia de IA em fotografia e vídeo para imaginar e construir narrativas de afeto protagonizadas, sobretudo, por pessoas negras e indígenas.

Pode nos contar um pouco sobre você e seu trabalho como artista visual de Inteligência Artificial?

Eu sou artista visual, bacharela em Artes Visuais pela UFBA, nasci e cresci em Salvador. Minha prática artística abrange diversas formas de expressão como pintura, ilustração, fotografia, vídeo e direção criativa.

 

Não me limito ao nicho de artistas que trabalham com I.A, pois eu tenho uma trajetória artística e estou me apropriando da I.A para desenvolver um trabalho específico que se propõe mais a discutir sobre a história do Brasil, confrontando seus traumas e apagamentos, do que sobre o uso da tecnologia em si.

 

Vejo as ferramentas de I.A como um recurso entre tantos outros que utilizo no processo de criação. As imagens partem de um pensamento crítico e estético pessoal, carregam mensagem, sentido, conceito, emoção, denúncia, afeto; discussões que são muito mais profundas e urgentes pra mim.

Inteligência Artificial @alabadaue

"Eu sou uma mente criativa em busca de ferramentas, linguagens e suportes disponíveis para me expressar e construir o imaginário que eu acredito. Uma mente muito analógica, inclusive, e acho que foi esse interesse pelo passado, pela memória, pelo arquivo, pela ancestralidade, que me fez utilizar ferramentas que costumam apontar pra imaginação de supostos futuros, para investigar e ficcionar arquivos e registros de momentos que existiram, mas que não foram documentados devido a escravidão. "

⎯ Mayara Ferrão

Inteligência Artificial, decolonialidade e coragem por Mayara Ferrão

Como você vê a relação entre a tecnologia de IA e a arte? De que maneira a Inteligência Artificial pode enriquecer a estética brasileira?

A discussão sobre inteligência artificial x arte é complexa, polêmica e extensa. Precisa ser pautada, mas como em toda discussão, precisamos considerar o recorte político e racial da questão. 

 

Falando sobre o recorte específico do qual faço parte, de artistas independentes que muitas vezes não conseguem viabilizar uma simples ideia porque falta verba, produzir a partir de ferramentas tecnológicas que estão acessíveis para qualquer pessoa interagir, de modo geral, é uma forma de nivelar um pouco as possibilidades de fazer arte.

 

Eu trabalho com audiovisual, mas enfrento uma barreira gigantesca enquanto diretora com a falta de orçamento para realizar os meus projetos. Pude experimentar a possibilidade de concepção de uma ideia que me demandaria muito investimento para realizar no mundo físico, mas que a partir da interação com I.A somada a toda minha visão artística, foi possível de existir.

 

Eu acredito que a interação com a I.A pode enriquecer a estética brasileira por democratizar um pouco os meios de produção. É mais sobre acesso. Quando colocamos ao alcance de pessoas que produzem e pensam estética no Brasil uma ferramenta capaz auxiliar no processo de imaginar e construir imagens, abrimos janelas de possibilidades de manifestações diversas, concebidas com qualidade, com orçamentos baixos ou até zero. Isso me interessa.

Qual foi a inspiração por trás do projeto “Álbuns de Desesquecimentos”?

A minha maior inspiração para começar a construção desse grande álbum com imagens coloniais “desesquecidas” foi o meu incômodo diante das condições violentas e estereotipadas em que pessoas negras e originárias, sobretudo mulheres, eram retratadas durante o período colonial. Marcadas nas imagens de arquivos públicos como figuras exóticas, servis e hipersexualizadas, correspondendo sempre ao olhar racista e sexista predominante na sociedade. 

 

Existe uma lacuna de documentações históricas do Brasil, sejam fotográficas ou textuais relacionadas a troca de afeto entre mulheres negras e originárias por um viés amoroso e é importante reconhecer que essas lacunas na representação não significam que essas mulheres e esses amores não existiram, ou que suas histórias sejam inválidas. Foi diante desse desconforto que tive o insight de gerar fotografias ficcionando e revelando essas histórias de amor esquecidas. 

 

 Quando eu construo fotografias e documentos retratando mulheres negras e originárias expressando seus afetos em um contexto histórico colonial, eu estou tensionando uma narrativa de opressão, de silêncios, de violência, lacunas, e invisibilização que está escancarada nos arquivos fotográficos coloniais. Além disso, existe um convite para reimaginar e sonhar um passado que não nos favorece.

Como a Inteligência Artificial contribui para o seu processo criativo? Pode nos explicar como você usa essa tecnologia na prática?

A minha pesquisa com I.A parte de uma investigação em torno dos arquivos imagéticos do Brasil colonial. Eu me aproprio de imagens coloniais de domínio público, ou seja, imagens que não se relacionam com obras de artistes vives, para me inspirar e ficcionar registros antigos de trocas afetivas entre mulheres negras e originárias. 

 

Meu processo criativo começa no conceito, no roteiro, na construção do prompt, que é alimentado com diferentes informações desde minhas pesquisas em torno de arquivos, da idealização da imagem que eu quero gerar considerando detalhes como o momento histórico, equipamentos fotográficos, a estética das roupas, dos cabelos, da arquitetura etc, à memórias que eu tenho. A partir da geração de imagem, faço intervenções digitais e analógicas construindo as camadas do trabalho. 

Quais são os desafios e as oportunidades de usar Inteligência Artificial na arte brasileira?

O meu maior desafio investigando a I.A são os discursos de ódio sobre a legitimidade do trabalho. Questionar é um direito, é necessário, mas precisa ser feito com respeito. Eu tenho história e um trabalho reconhecido, mas sou atacada diariamente e reduzida à uma farsa porque estou investigando e me apropriando de uma ferramenta tecnológica que existe, é desenvolvida e explorada pela branquitude, e que não vai sumir caso eu deixe de fazer.

 

Não sou uma grande defensora de I.A, eu sou defensora do meu trabalho e das minhas ideias. Eu entendo que o uso de I.A não só na arte, mas em diferentes aspectos da vida precisa ser debatido e tensionado. Eu entendo que imagem é poder. Eu entendo que as imagens não são inocentes e podem mobilizar pro bem e pro mal e que o uso dessa tecnologia de forma irresponsável pode gerar danos. Mas eu entendo também que sou uma mulher negra que está correndo há muitos anos, entregando excelência muitas vezes sem recurso algum, herança, ou financiamento, uma artista de Salvador que está desenvolvendo uma pesquisa séria e ética e, que a partir disso, está expondo seu trabalho em galerias de arte pelo Brasil afora pela primeira vez.

Inteligência Artificial, decolonialidade e coragem por Mayara Ferrão

Que mensagem você gostaria de passar para a comunidade sobre o uso da Inteligência Artificial na arte e sua importância para a cultura brasileira?

Eu não acho que a I.A seja tão importante assim para a cultura brasileira. Importante mesmo são as mentes criativas. Eu acho que a I.A é uma sacada, uma estratégia. Ela pode ser uma aliada, um meio poderoso e acessível para projetar e ampliar a visibilidade de artistas em escala global. Entendendo isso, acredito que a importância da I.A se faz mais pela abertura de possibilidades de criação. E essa abertura pode e deveria acontecer sobretudo através do incentivo e viabilização de projetos artísticos. 

 

A mensagem que eu quero deixar é: a criatividade precisa andar lado a lado com a ética. É fundamental que o uso da I.A seja guiado por princípios éticos e responsáveis. Isso inclui considerar questões de autoria e transparência nos processos criativos.


Meu processo criativo começa no conceito, no roteiro, na construção do prompt, que é alimentado com diferentes informações desde minhas pesquisas em torno de arquivos, da idealização da imagem que eu quero gerar considerando detalhes como o momento histórico, equipamentos fotográficos, a estética das roupas, dos cabelos, da arquitetura etc, à memórias que eu tenho. A partir da geração de imagem, faço intervenções digitais e analógicas construindo as camadas do trabalho. 

Mayara Ferrão

ARTISTA DO BRASIL

Conheça Mayara Ferrão

Mayara Ferrão é uma artista visual de Salvador/BA e tem em seu processo múltiplas experimentações artísticas, caracterizando-se principalmente pela pintura e ilustração. A artista também se apropria da tecnologia I.A. na fotografia e no vídeo para imaginar e construir narrativas de afeto protagonizadas, sobretudo, por pessoas negras e indígenas.

 

Sua vivência enquanto mulher, a ancestralidade, os signos e elementos da cultura afro-brasileira são a principal fonte de inspiração e pesquisa da artista.

Acompanhe em @mayaraferrao e @verdadetropical.

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