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Cosme e Damião: infância sagrada entre balas e caruru

Uma homenagem à magia dos tempos de criança, onde gêmeos, Ibejis e santos se unem em devoção popular nas ruas de Salvador (BA).

Por @alabadaue

 

 

“Tem bala de coco e peteca, deixa Ibeijada brincar. Hoje é dia de festa, Ibeijada vem saravá!”

⎯ Canção afro-religiosa

Todos os anos, em setembro, os moradores de Salvador (BA) se agitam com a expectativa de descobrir onde será servido o tradicional caruru de Cosme e Damião. Em muitos lares baianos, a data, 27/09 — patrimônio imaterial da Bahia —, é celebrada com fartura de comida, em homenagem aos santos que intercedem pelas graças relacionadas à saúde e prosperidade.

 

O culto a Cosme e Damião tem raízes no catolicismo oriental, originário da região que hoje corresponde à Turquia e aos Emirados Árabes. Essas devoções antigas frequentemente incluem elementos místicos, como a promoção de milagres intermediados pelos santos junto a Deus. Além disso, há uma forte conexão com a memória, uma vez que o culto aos santos perpetua a lembrança de personagens que representam resistência e fé. Muitos, inclusive, morreram por suas crenças, sendo a maioria dos santos martirizados.

Na tradição católica, Cosme e Damião eram irmãos adultos, embora não gêmeos, conhecidos por suas práticas de medicina e caridade. Agora, você pode estar pensando: “Ué, eu os conheço na imagem de crianças”. Calma, já vamos chegar a essa explicação. 

 

No Brasil, o catolicismo trazido pelos portugueses no século 16 encontrou, de maneira não muito pacífica, a cosmologia africana, resultando em trocas e transformações culturais. Essas interações deram origem a novas práticas religiosas, como o afro-catolicismo, que mescla elementos do cristianismo com tradições afro-brasileiras, criando formas únicas de devoção nas mais de 300 festas populares da Bahia.

“Evito usar a palavra sincretismo porque ela traz uma interpretação superficial para algo tão complexo”, analisa a jornalista e doutora em antropologia pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), Cleidiana Ramos.

“O termo mais apropriado em Salvador é afro-catolicismo, especialmente quando falamos das festas populares, que costumam fazer essa associação. Por exemplo, temos Santa Bárbara e Iansã, que não são a mesma figura. Já na festa de Iemanjá, não há essa relação. No culto a Cosme e Damião fica claro como nem sempre o colonizador vence. Na realidade, o culto a São Cosme e São Damião penetrou a tradição católica oficial, e mudanças ocorreram. Na versão popular, eles são representados como crianças”.

⎯ Cleidiana Ramos, jornalista e doutora em antropologia pela Universidade Federal da Bahia.

A pesquisadora discorre que entre os povos africanos que vieram do antigo reino de Daomé e da Nigéria, havia um culto ligado à infância, considerada sagrada. Esse culto se relacionava principalmente aos gêmeos, que eram cercados de cuidados especiais por serem portadores dos mistérios da natureza. A mulher que dá à luz gêmeos também é sacralizada. A Nigéria, por sinal, tem as maiores taxas de nascimentos de gêmeos no mundo.

 

Essa visão chegou à Bahia com a diáspora africana, onde os santos Cosme e Damião são cultuados como crianças. Enquanto, na tradição católica, é comum acender velas para os santos, no território baiano, Cosme e Damião recebem comida, pois estão associados aos orixás. Na cultura Iorubá, eles se relacionam com as divindades Ibejis – os filhos gêmeos de Xangô e Iansã – e igualmente com os Erês, a representação infantil dos orixás. Vale notar que Ibejis e Erês não são a mesma manifestação, porém ambos fazem parte de um culto que exalta a infância tanto na umbanda quanto no candomblé. 

 

Cleidiana menciona que a criança não está na comunidade apenas como alguém que necessita de cuidados, mas como uma presença sagrada, assim como a velhice.

O que vai no caruru?

O caruru é um prato à base de quiabo, camarão e cebola, e também refere-se ao conjunto das comidas servidas na festa. Quando se diz “vou dar um caruru”, significa oferecer uma refeição composta por vários pratos, incluindo o caruru. Em Salvador e nas cidades do Recôncavo Baiano, o dia de Cosme e Damião é um verdadeiro banquete. Além do prato principal, é oferecido o vatapá, galinha de xinxim, inhame, ovo, pipoca, cana-de-açúcar, milho branco, rapadura, farofa de dendê, acarajé, abará, feijão preto e fradinho, banana frita e batata-doce. São contemplados as comidas referentes a todos os orixás. 

“Devido à desigualdade e exclusão, nossos ancestrais não tinham a quem recorrer além dos Deuses e Deusas, que vieram com eles na travessia do Atlântico. O catolicismo, influenciado pelos cultos greco-romanos, encontrou a religiosidade afro no Brasil, e juntas formaram o que atualmente se chama religiosidade afro-indígena brasileira, mantendo elementos católicos”, relata Cleidiana.

O banquete afro-brasileiro oferecido no dia de Cosme e Damião: vários pratos celebram o axé dos orixás. Crédito: arquivo pessoal Marlene Jesus da Costa.

Em Salvador, existe apenas uma paróquia dedicada a Cosme e Damião, localizada na Liberdade, um dos bairros mais negros da cidade. Nessa igreja, os santos são exibidos como adultos, contudo no dia da festa, a celebração é dominada pela participação de gêmeos e os fiéis levam doces e balas. A rua se torna um palco luminoso, livre para as crianças se divertirem.

 

O rito do caruru, conhecido como ‘Balbúrdia’, envolve colocar a comida em uma cumbuca de barro (alguidar) e convidar sete meninos para comer com as mãos, sentados em uma esteira, enquanto cânticos aos orixás ecoam. A tradição recomenda que os demais comam somente depois das crianças. Nesse momento, a promessa está paga. Quase sempre, 99% dos devotos que oferecem o caruru o fazem em agradecimento por graças recebidas relacionadas à saúde. 

 

Apesar de não saber ao certo quando a festa começou, estima-se que ela tenha surgido no século 19.

“São cultos que colocam a infância no lugar que ela merece. Nas comunidades afro-religiosas, as crianças são extremamente importantes e temos muito o que aprender com a força delas. É uma reverência aos pequenos em nossa estrutura de mundo, ligada à alegria e fartura”, aponta a jornalista. Ela destaca que, embora as religiões sejam diferentes, os encontros entre elas oferecem uma lição valiosa para tempos de intolerância e guerra, mostrando que a convivência harmoniosa é possível e que as ortodoxias podem ser subvertidas. 


Como referência na área acadêmica acerca do tema, ela cita o livro Cosme e Damião: O Culto aos Santos Gêmeos no Brasil e na África, do antropólogo baiano Vivaldo da Costa Lima.

Afeto e o fortalecimento de laços

Segundo a chefe de culinária afro-baiana, Marlene Jesus da Costa, cada pessoa oferece o caruru conforme sua situação financeira. É um prato que traz brilho e cores vibrantes, do jeito que as crianças gostam. A preparação da festa começa semanas antes, com a escolha dos pratos e a decoração. No dia anterior, ela passa horas cortando bacias de quiabo, tudo à mão, sem utensílios, para direcionar sua própria energia no preparo. Ela rememora que, na infância, o momento que antecedia o evento era de muita festa. A chefe, criada pela avó, está envolvida na cultura do caruru desde pequena, quando, aos 10 anos e sob a supervisão da matriarca, preparava os quiabos.

 

O que mais encanta Marlene é o colorido do prato, que contém todas as vitaminas necessárias para a vitalidade do corpo físico, e a alegria da meninada na comunhão da comunidade, que faz fila para pegar a sua quentinha de caruru. “Eu amo fazer caruru. Cresci vendo as festas populares; minha avó era convidada para preparar essas comidas afro-baianas e, infelizmente, com o tempo, muita coisa foi se perdendo. Tento fazer esse resgate com o meu projeto ‘Quintal de Yayá’, trazendo a lembrança afetiva de nos sentarmos todos à mesa para nos alimentarmos”, comemora Costa, que é autora, junto com Vovó Cici de Oxalá, Egbomi (autoridade religiosa) do Terreiro de Candomblé baiano Ilê Axé Opô Aganjú, do livro ‘Cozinhando Histórias’, que reúne receitas afro-brasileiras.

A chefe de culinária afro-baiana, Marlene Jesus da Costa, durante o preparo do caruru em Salvador (BA). Crédito: arquivo pessoal.

E por falar nela, a contadora de histórias afro-brasileiras Nancy de Souza e Silva, de 82 anos, mais conhecida como Vovó Cici, diz se emocionar com as narrativas, todas a afetam de alguma forma. Natural do Rio de Janeiro e baiana de coração, Vovó Cici recorda que, quando era criança, diferente dos costumes de Salvador, era comum distribuir doces em saquinhos na data de Cosme e Damião.

“Lembro que, logo cedo, as mulheres que moravam na periferia saíam de porta em porta pedindo lembrancinhas. Elas levavam sacolas de feira para encher de doces. Era um batalhão de mães com seus filhos e, às vezes, com os filhos dos vizinhos. Em Salvador, não vejo essas cenas; aqui, damos caruru ou montamos mesas de doces. Na minha cultura, falar de criança é sinônimo de prosperidade, boa sorte e fartura”. 

Vovó Cici de Oxalá, contadora de histórias afro-brasileiras. Crédito: Marlene Jesus da Costa.

Com o aumento da violência contra crianças e adolescentes no Brasil, Vovó Cici, ao preparar o caruru, pede proteção para eles. De acordo com sua sabedoria, quanto mais você agrada, mais satisfeitos ficam os Ibejis. Os espíritos daqueles que já morreram se alegram ao ouvir seus nomes sendo citados com amor e carinho, sentindo-se lembrados como ancestrais.

 

A festa de Cosme e Damião se estende até 25 de outubro, dia dos gêmeos Crispim e Crispiniano, e, em novembro, período ligado aos mortos, encerra a temporada de caruru.

 

Não pense que acabou: o prato retorna em 4 de dezembro, Dia de Santa Bárbara. No entanto, ele é distinto do servido em Cosme e Damião: o quiabo é cortado redondinho, não traz tantas iguarias e vem acompanhado de acarajé para homenagear a santa insubmissa.

O calendário popular brasileiro.

Fonte de inovação cultural brasileira.